quinta-feira, 9 de abril de 2009

a seat by the window, please!

Era criança quando, pela primeira vez, entrei em um avião. A ansiedade de voar era enorme. Eu queria me sentar ao lado da janela de qualquer jeito, acompanhar o vôo desde o primeiro momento e sentir o avião correndo na pista cada vez mais rápido até a decolagem. Ao olhar pela janela via, sem palavras, o avião rompendo as nuvens, chegando ao céu azul. Tudo era novidade e fantasia.

Cresci, me formei, comecei a trabalhar. Desde o início, viajar era um desejo constante. Conhecer outras cidades, outros países, lugares diferentes sempre me fascinaram. No início pedia sempre poltronas ao lado da janela, e, ainda com olhos de menino, fitava as nuvens, curtia a viagem, e nem me incomodava de esperar um pouco mais para sair do avião, pegar a bagagem, coisa e tal.

O tempo foi passando e podia ficar ausente do tabalho apenas por poucos dias, e já não fazia questão de me sentar à janela, nem mesmo de ver as nuvens, o sol, as cidades abaixo, o mar ou qualquer paisagem que fosse. Perdi um pouco do encanto. Pensava somente em chegar e sair, me acomodar rápido e sair rápido. As poltronas do corredor agora eram exigência . Mais fáceis para sair, sem ter que esperar ninguém, sempre e sempre preocupado com a hora, com o compromisso, com tudo, menos com a viagem, com a paisagem, comigo mesmo.

Em uma viagem recente, por um desses maravilhosos acasos do destino, estava eu louco para voltar a São Paulo numa tarde chuvosa, precisando chegar o mais rápido possível para não pegar o horário de pico e o trânsito infernal da 23 de maio. O vôo estava lotado e o único lugar disponível era uma janela, na última poltrona. Sem pensar concordei de imediato, peguei meu bilhete e fui correndo para o portão. Embarquei no avião, me acomodei na poltrona indicada: a janela. Janela que há muito eu não via, ou melhor, pela qual já não me preocupava em olhar.

E, num rompante, assim que o avião decolou, lembrei-me da primeira vez em que voara. Senti novamente, e estranhamente, aquela ansiedade, aquele frio na barriga. Olhava o avião rompendo as nuvens escuras até que, tendo passado pela chuva, apareceu o céu. Era de um azul tão lindo como jamais tinha visto. E também o sol, que brilhava como se tivesse acabado de nascer.

Naquele instante em que voltei a ser criança, percebi que estava deixando de viver um pouco a cada voo em que desprezava aquela vista. Pensei comigo mesmo: será que em relação às outras coisas da minha vida eu também não havia deixado de me sentar à janela, como, por exemplo, olhar pela janela das minhas amizades, dos meus relacionamentos, do meu trabalho e convívio pessoal?

Creio que aos poucos, e mesmo sem perceber, deixamos de olhar pela janela da nossa vida. Ela também é uma viagem e se não nos sentarmos à janela, perdemos o que há de melhor: as paisagens, que são nossos amores, alegrias, tristezas, enfim, tudo o que nos mantém vivos. Se viajarmos somente na poltrona do corredor, com pressa de chegar sabe-se lá aonde, perderemos a oportunidade de apreciar uma das belezas que viagem nos oferece.

Se você também está num ritmo acelerado, pedindo sempre poltronas no corredor para embarcar e desembarcar rápido e ganhar tempo, pare um pouco e reflita sobre aonde você quer chegar. A aeronave da nossa existência voa célere e a duração do voo não é anunciada pelo comandante. Não sabemos quanto tempo ainda nos resta. Por essa razão, vale a pena sentar próximo da janela para não perder nenhum detalhe.

Afinal, a vida, a felicidade e a paz são caminhos e não destinos.

segunda-feira, 6 de abril de 2009

Capítulo XXIX - Epílogo


- O que Bruno lhe disse de tão importante naquela noite? - perguntou Jeitosinha, ansiosa, ao travesti Kátia Trovoada.
- Bem, mona, ele chegou aqui todo sem gracinha. Estava bem bêbado, mas nem por isso perdeu a timidez.
- Sei, e então? - a loira mal controlava suas emoções.
- Então eu perguntei como ele queria, e coisa e tal... ele me disse que era a sua primeira vez num lugar como esse, e provavelmente a última.
- O que mais?
- Bem, ele disse que não estava à vontade, mas que precisava se colocar à prova, por amor. Na ocasião não entendi nada, pensei que era coisa de bêbado, mas agora...
Os olhos de Jeitosinha brilharam:
- Sim! Como não pensei nisso antes? Ele queria saber se conseguiria se adaptar ao meu estranho jeito de amá-lo!
- Ah, santa, carinha de quem estava se adaptando ele fez! - emendou Kátia, com um gesto afetado.
- Vou procurá-lo agora mesmo!
Enquanto Jeitosinha corria para os braços de seu amado, Bruno colocava um ponto final em sua relação com Adenaíra. Foi uma longa conversa, que terminou em clima cordial.
- Não me leve a mal. Pensei que pudesse esquecer Jeitosinha, mas é impossível. De alguma maneira, sinto que quando estou com ela tudo parece se encaixar.
- Se eu tivesse sabido antes... - lamentou Adenaíra. - De qualquer forma, devo-lhe minha vida. Sou grata pelos dias que passamos juntos e pelos seus cuidados. Espero que um dia você e Jeitosinha possam voltar a se entender.
- Não creio ser possível.
- Que segredo você guarda sobre ela? Existe algo mais além da particularidade anatômica?
- Não me force a dizer. Só lhe adianto que sua irmã não é quem parece ser.
Neste momento a porta da sala se abre de forma dramática.
- Sim, Bruno! Sim, meu amor! Sou sua Jeitosinha! Jamais fui tocada por outro homem que não você!
É claro que àquela altura do campeonato, falar sobre Beth Balanço era perfeitamente dispensável. Aliás, ela era uma mulher.
- Não pode ser! Eu vi você naquele local deplorável!
- Eu vinha sendo chantageada por Arlindo, mas não cheguei a entrar em ação! É uma longa história meu amor.
Bruno começou a se despir de sua casca de rancor.
- Eu... eu também só fui lá naquele dia porque...
- Eu já sei. Esqueça, Bruno, não diga nada. Apenas me beije!
Cabisbaixa, Adenaíra deixou o apartamento de Bruno e seguiu a esmo pelas ruas escuras da cidade.
Jeitosinha e seu homem se amaram loucamente, como estavam predestinados a fazer por muitos e muitos anos.

Não muito longe dali, uma nave espacial alienígena pousa no matagal.
- Porque voltamos, chefe? - perguntou uma das criaturas verdes.
- Veja com seus próprios olhos! Compramos gato por lebre!
O ET entregou ao colega um exemplar de uma popular revista pornográfica.
- Ué... aquela moça que trouxemos à nave tinha um detalhe a mais.
- Claro! Era um homem disfarçado!
- Como o senhor descobriu?
- Bem, já tínhamos até saído desta galáxia quando resolvi folhear umas revistas que levei de recordação deste planetinha atrasado. Foi aí que me deparei com estas fotos de mulheres nuas e percebi tudo: as fêmeas daqui são, aparentemente, exatamente como as nossas! Tudo indica que estão prontas para reproduzir nossos filhos!
- Que beleza, chefe! O que faremos?
- O óbvio: pegaremos uma outra mulher, nos certificaremos de que ela não tem nenhum complemento indesejável e voltaremos às nossas experiências!
- Então aproveita, chefe! - disse um dos homens verdes, olhando pela escotilha. - Vem vindo uma gatona ali!
E foi assim que Adenaíra acabou nas mãos dos extraterrestres. Por mais que os cientistas do outro mundo se esforçassem, continuaram sem entender o mecanismo de reprodução dos seres humanos.
Adenaíra nunca mais foi vista. E como Jeitosinha preferiu guardar segredo sobre sua experiência com os ETs, o planeta Terra nunca soube que duas irmãs, numa surpreendente manobra do destino, acabaram salvando a humanidade.

Hoje, quem vê na missa dominical Jeitosinha e Bruno com suas lindas crianças adotadas, nem imagina que, por trás daquela aparente normalidade, repousa um segredo e uma história surpreendente. E se vocês acham que os homenzinhos verdes são a parte mais bizarra desta saga, é porque não viram Jeitosinha e Bruno em seus momentos de intimidade.


O FIM

domingo, 5 de abril de 2009

Capítulo XXVIII - Desfechos Finais


Alguns dias se passaram desde a morte de Ambrósio. Adenaíra vinha se recuperando da infecção hospitalar. Bruno a levara para sua casa e a convivência era amigável. A nova moça se esforçava para transformar aquele apartamento de solteiro em um lar, e o rapaz gostava de sua companhia. Mas não conseguia esquecer Jeitosinha e ainda sentia um enorme, digamos, vazio por dentro.

Como era de se esperar, os exames periciais confirmaram que tratava-se da letra de Ambrósio no bilhete. Provaram também que as digitais eram mesmo de Arlindo. Impotente diante da armadilha da irmã, e diante das péssimas condições da carceragem, o rapaz simplesmente enlouqueceu. Ora pensava ser Napoleão, ora delirava como Fernando Collor.

Na casa de Jeitosinha, todos se esforçavam para retomar às rotinas de suas vidas. Adenaíra escrevera contando da operação e de como estava feliz com sua nova condição. Omitira, entretanto, que era hóspede de Bruno.

No bordel de Madame Mary, Jeitosinha buscava superar a perda do seu amado nos braços de Beth Balanço. O treinamento da loira continuava. Na penumbra do seu escritório, a cafetina continuava instruindo Jeitosinha sobre os mistérios do amor e do sexo, mas ainda eram apenas aulas teóricas, o que já estava deixando nossa heroína impaciente.
- Às vezes sinto que a senhora, deliberadamente, está adiando minha estréia profissional. - questionou um dia Jeitosinha.
Pela primeira vez, a sempre segura Madame Mary pareceu incomodada.
- Que bobagem, querida. Já lhe disse, tenho uma imagem a zelar. Tudo virá a seu tempo.
Jeitosinha vinha se abrindo cada vez mais com a patroa. Chegou a confessar o atentado com a serra-elétrica, o plano que incriminou Arlindo e o desejo de se vingar da mãe.
Madame Mary a tudo ouvia, sem emitir qualquer opinião. Naquela tarde, entretanto, encontrou Jeitosinha mais fragilizada do que de costume.
- O que houve, criança? - perguntou a cafetina.
- Não sei o que está havendo comigo, Madame Mary. - disse a loira, com a voz embargada.
- Talvez seja a falta de Bruno, ou o remorso por ter tirado a vida do meu pai. Mas o fato é que estou fraquejando. Começo a achar que talvez mamãe não seja assim tão culpada pelo meu destino. Talvez seja a maior das vítimas, preservando um segredo por tantos anos apenas para poupar a todos da ira de Ambrósio.
- O que você quer dizer com isso? - perguntou Mary.
- Quero dizer que estou cansada de ódio e sofrimento. Vou buscar minha felicidade. E começarei procurando mamãe e dizendo que a perdôo.
- Não creio que você precise procurá-la. - disse Madame Mary, num tom de voz bastante familiar.
A mulher aproximou-se do fraco abajur que iluminava o escritório, e, com lágrimas banhando o rosto, retirou sua máscara.
- Mamãe? É você! Não pode ser!
- Claro que sou eu, querida. Você acha que com o salário de contínuo do seu pai conseguiríamos criar sete filhos e ainda comprar pra você a coleção completa da Barbie?
- Então é por isso que o meu treinamento nunca terminou! Você não queria prostituir a própria filha!
- Sim, este foi apenas um dos muitos sacrifícios que fiz por você. Fui eu quem joguei fora os restos mortais de Ambrósio e limpei a bagunça na sala. O telefonema e o bilhete falando da pescaria também foram invenções minhas.
- Então... papai realmente havia morrido? - espantou-se.
- Sim! Só não me pergunte como ele voltou à vida. Talvez tenha sido um milagre dos céus para poupá-la, Jeitosinha. Você já havia sofrido demais, e aquele plano da serra-elétrica era simplesmente ridículo. Você deixou suas digitais espalhadas pela casa inteira! O segundo crime foi muito mais requintado, e ainda puniu o chantagista do Arlindo.
Jeitosinha abraçou a mãe, emocionada. Finalmente, quase tudo parecia se encaixar. Era um tempo de recomeço. De repente, Jeitosinha percebeu que o bordel nunca fora seu lugar. O que de fato a atraía era o magnetismo de Madame Mary, que não era ninguém menos que a sua Marilena. Não fosse a saudade que sentia de Bruno, tudo estaria perfeito em sua vida.
No final daquela tarde, Jeitosinha se despediu das colegas de bordel.
- Vou tirar um tempo para mim. Preciso repensar minha vida. Talvez volte a esta casa como auxiliar de mamãe, não sei. O importante é que fiz muitos amigos aqui.
Beth Balanço chorava copiosamente.
- Está tudo acabado entre nós? - perguntou.
- Sim, Beth, não adianta. Bruno é o meu único amor. Preciso esquecê-lo antes de poder recomeçar com outra pessoa.
Beth pareceu entender. Tanto que deu a Jeitosinha um conselho bem prático:
- Se você o ama tanto, porque não tenta uma reaproximação? Tudo bem, ele pensa que você é uma de nós, mas você, em contrapartida, flagrou-o nos braços da Kátia Trovoada.
Kátia, o traveco moreno que possuiu Bruno, espantou-se:
- Aquele era o seu bofe? Ih, menina, você está sofrendo à toa!
- Como assim? - surpreendeu-se Jeitosinha.
E Kátia começou a narrar o diálogo que ela e Bruno tiveram antes do ato de amor.

Quais serão as revelações de Kátia?

sexta-feira, 3 de abril de 2009

Capítulo XXVII - O Desfecho do Assassinato


-Eu não matei papai!
Arlindo gritava com a convicção dos inocentes, mas a detetive Vanessa estava impassível.
- Você vai explicar isso ao tribunal. Temos evidências mais do que suficientes para prendê-lo.
- Quais? Quais são as evidências? - perguntou, inconformado.
- Seu pai amanheceu morto, e tudo indica que foi envenenado. Sua mãe percebeu logo no começo da manhã e nos chamou. Enquanto você dormia, procuramos pistas pela casa e encontramos, no fundo de sua gaveta de cuecas, o frasco de um veneno muito poderoso.
- Não pode ser! - interrompeu o encrencado Arlindo. - Alguém colocou isso lá para me incriminar!
Vanessa sorriu com sua frieza habitual.
- Não adianta, Arlindo. É melhor confessar. Você não contava com isso, mas seu pai, prevendo o seu trágico destino, escreveu uma carta.
A moça fez um sinal com os dedos e um dos assistentes entregou-lhe o pedaço de papel. Vanessa prosseguiu.
- Estava no bolso do pijama de Ambrósio. Veja o que diz:
"Se alguém encontrou esta carta, provavelmente já estarei morto. O fato é que recobrei minha memória. Arlindo, meu filho mais velho, foi o responsável pela primeira tentativa de assassinato. Ainda não sei o que farei, mas como ele pode tentar de novo, deixo registrada esta denúncia. Arlindo nunca me perdoou por uma grande surra que lhe dei em sua adolescência, e nunca me perdoou por gostar mais de Jeitosinha. Percebendo que eu finalmente começava a me lembrar de tudo, passou a me ameaçar. Tenho medo de procurar a Polícia. Aliás, como tornei-me um monstro, não faz tanta diferença estar vivo ou morto. Tudo o que desejo é que, caso dê cabo de minha vida, o cruel Arlindo seja punido."
Ambrósio assina a carta. É claro que ainda faremos um exame grafotécnico.
- Não pode ser! Este bilhete é forjado! Você verá! - disse o primogênito de Ambrósio e Marilena.
- Há ainda uma terceira pista. - completou Vanessa.
- Existe este copo, encontrado ao lado da cama do seu pai, com resíduos do mesmo veneno encontrado em seu quarto, dissolvido em suco de groselha. Nele há digitais de duas pessoas diferentes.
"Sim!" - pensou Arlindo. "Agora eu entendo! Foi Jeitosinha! Ela me serviu uísque ontem, neste mesmo copo. Como ela usava luvas, só as marcas de meus dedos estão no vidro!".
Em pânico e tremendo de ódio, Arlindo apontou para a irmã:
- Foi ela! Ela é uma farsa! Um travesti maníaco e assassino! A senhora ouviu, detetive, o próprio papai dizendo isso!
- Seu pai estava muito abalado. Este tipo de confusão é comum. Mesmo sem querer, Jeitosinha era o pivô dos desentendimentos. Talvez por isso ele a tenha visto em seu delírio. Agora, que história é essa de travesti?. - Vanessa dirigiu a pergunta a Marilena.
- Arlindo está tentando confundi-la, detetive. - a mãe não perdeu a chance de socorrer a filha naquele momento dramático.
- Quer comprovar? - disse Jeitosinha, contando com a negativa de Vanessa.
- Não é preciso, querida. Sei bem como são os homens. Estão sempre tentando encontrar algum defeito nas mulheres bonitas.
Vanessa dirigiu-se aos assistentes e ordenou:
- Levem-no. Vamos esperar o exame da letra no bilhete e das marcas no copo. Você vai aguardar na cadeia o resultado, Arlindo. E caso se comprovem as evidências, não sairá de lá tão cedo.
Debatendo-se e gritando, o cruel Arlindo foi recolhido ao camburão.
Os policiais deixaram a casa e Marilena finalmente demonstrou sua dor chorando convulsivamente.
Na verdade sentia-se aliviada pelo fim de Ambrósio, mas não se conformava com o fato de que um de seus filhos tivesse assassinado o homem.
- Jeitosinha, porque Arlindo tentou incriminá-la?
- Você sabe que ele me odeia, mamãe.
Jeitosinha estava calma e segura. Beijou suavemente o rosto de Marilena e foi para o quarto, já pensando no próximo ato de seu circo de horrores.

Tornar-se-á Jeitosinha uma assassina em série?

quinta-feira, 2 de abril de 2009

Capítulo XXVI - A Mulher Inesquecível


Jeitosinha entregou ao pai uma caneta e um pedaço de papel.
- Assine esta folha em branco.
- M-mas, filha, você sabe que eu não tenho posses.
- Apenas assine!
Meio vacilante, Ambrósio escreveu seu nome no papel.
- Pronto. Estou livre agora?
- Sim. - disse a moça, sorrindo sarcasticamente.
- Tenha bons sonhos.
Jeitosinha foi para seu quarto e esperou pacientemente que todos voltassem para casa. A mãe, que sempre se envolvia nas atividades da Igreja, voltou de uma novena. Os irmãos foram chegando, um a um, se amontoando em volta da TV, como sempre faziam.
Normalmente Arlindo, mais arredio, preferia ficar lendo em algum canto da casa até que todos se recolhessem. Era a hora em que finalmente tinha a sala só para ele, e ficava zapeando os canais de TV.
No silêncio da madrugada, Jeitosinha aproximou-se de Arlindo, vestida como uma Diva do cinema. O longo vestido negro, que exibia seus ombros e expunha parte dos seios, a abertura lateral, por onde podia-se ver furtivamente a longa extensão de sua perna esquerda, o par de luvas cobrindo os braços até além do cotovelo... Tudo remetia à inesquecível Gilda.
Arlindo surpreendeu-se com a maturidade da beleza da irmã, que trazia em um copo uma dose de uísque.
- Sabe, irmão, às vezes a felicidade chega até nós por caminhos estranhos.
- O que você quer dizer? - espantou-se.
- Quero dizer que encontrei meu verdadeiro eu no bordel de Madame Mary. E devo isso a você.
Jeitosinha sorveu um gole generoso de uísque e ofereceu o copo ao irmão.
- Beba comigo. Vamos selar com esta dose de uísque a paz entre nós.
Arlindo pegou o copo com desconfiança. Mas a irmã acabara de provar da bebida, descartando a possibilidade de que estivesse envenenada.
Nervoso, ele bebeu todo o líquido do copo, devolvendo-o à loira.
Jeitosinha pegou uma pedra de gelo e passou provocativamente no pescoço e nos seios. Depois, debruçou-se sobre Arlindo, alisou sua coxa direita e, tocando os lábios em seu ouvido esquerdo, murmurou:
- Amanhã, irmão querido, todos nós começaremos uma vida nova.
A loira disse esta frase enigmática e se retirou.
O cruel Arlindo chegou a pensar que sua irmã estava tão desequilibrada quanto o pai.
Mas logo voltou a entreter-se com um filme barato de TV, antes de mergulhar em um sono profundo.

No hospital público, Adenaíra abria os olhos:
- B-bruno... Pensei que tinha sido um sonho.
- Estou aqui. Estou te esperando. - a frase brotou sem nenhuma convicção.
- Me esperando? - perguntou a nova irmã de Jeitosinha.
- Sim. Você precisa lutar. Precisa superar esta doença. Vou estar ao seu lado.
- Oh, Bruno! Você vai me dar uma chance?
- O tempo dirá. Por enquanto, prometo-lhe apenas minha atenção e minha amizade.
- Você não sabe como este simples fio de esperança me deixa feliz! - disse a moça, já com uma certa luz no rosto pálido e febril.

Na manhã seguinte, Arlindo acordou no mesmo sofá onde bebera com Jeitosinha. Entretanto estava cercado por policiais e algemado. No comando da operação, a detetive Vanessa dirigiu-se a ele, exibindo no semblante a realização pelo dever cumprido.
- Você está preso.
- M-mas... Eu não fiz nada! - espantou-se o rapaz. - Qual a acusação?
- Assassinato!
- Não! - o grito de Arlindo ecoou pela sala...

Quem morreu desta vez?


N.A. - There never was a woman like Gilda:

quarta-feira, 1 de abril de 2009

Capítulo XXV - O Drama de Adenaíra


- Adenaíra contraiu uma gravíssima infecção hospitalar, filho. - disse o médico.
Bruno ficou chocado com a notícia. O Adenair que conhecera era tão alegre, tão saltitante. "Assim, adormecido e com esta touca, é incrível a semelhança com Jeitosinha." - pensou.
Adenaíra abriu os olhos e viu Bruno, ao seu lado, com as bandagens envolvendo a cabeça.
- O que houve, meu amor? - balbuciou.
- Nada, não se preocupe. Caí da escada - mentiu o rapaz, numa tentativa de minimizar o sofrimento daquela recém mulher.
- E-eu fiz isso por você, Bruno. F-fiz por amor...
Os olhos de Adenaíra voltaram a se fechar.
- Doutor, quais as chances? - perguntou o angustiado rapaz.
- Depende muito. Ela pode simplesmente se entregar à doença, e então as chances serão mínimas. Mas se ela se apegar a algo que a faça querer viver, e se o antibiótico no estoque não estiver vencido, talvez ela tenha alguma chance.
- É uma pena. Gostaria de poder ajudar.
- Você pode! - disse o médico - Ela o ama! Dê-lhe esperanças!
Bruno continuava perdidamente apaixonado por Jeitosinha. E o que é pior: pela Jeitosinha completa, versão de fábrica. "Se Adenair soubesse que seu sacrifício ao realizar a cirurgia apenas aumentou o abismo entre nós..." - refletiu.
Mas, por outro lado, tentar salvar uma vida era motivação suficiente para fazê-lo recuperar o amor pela sua própria existência, depois da grande desilusão de encontrar a amada trabalhando num bordel.
Via como algo mais que uma simples coincidência o fato de que estavam juntos na mesma enfermaria.
- Tudo bem, doutor. Eu vou ajudar! - concluiu, conformado com aquele jogo do destino.

Em sua casa, sozinho no quarto, Ambrósio tentava reorganizar suas idéias.
Será que foi mesmo vítima de Jeitosinha? E os homens verdes? Novas imagens se formaram em sua mente depois do choque diante da detetive Vanessa. Lembrava-se, remotamente, de uma linda menina loira, que ele amava muito. Sim, talvez fosse Jeitosinha.
Ele começava a se lembrar dela. Para preservar sua sanidade, Ambrósio estava disposto a não associar a filha àquela cena dantesca e simplesmente esquecer o ocorrido.
Mas Jeitosinha não.
Aproveitando-se do fato de que estavam a sós na casa, a moça entrou no quarto dos pais para conversar com o seu deformado genitor.
- Papai...
- J-jeitosinha? - Ambrósio ainda tinha uma ponta de medo na voz. - Desculpe-me pelas acusações na sala. Minha cabeça não anda boa.
- Engana-se, velho sórdido. Sua cabeça anda melhor do que você pensa.
Ambrósio foi tomado pelo pânico! Aquele sorriso sarcástico e cruel! Sim, não fora uma fantasia! Jeitosinha o havia mutilado com a moto-serra!
- Não! - gritou o homem. - Me deixe em paz! Socorro!
- Grite. Ninguém lhe ouvirá.
- Não me mate! - implorou, de joelhos, abraçando os pés da loira.
- Eu não seria tão imbecil. Não agora, com aquela detetive intrometida por perto. Mas eu lhe aviso: se repetir aquelas acusações para quem quer que seja, não pensarei duas vezes antes de consumar o serviço que pensei ter finalizado.
- Sim, sim... - disse Ambrósio, patético, entre lágrimas. - Serei um túmulo! Mas, por favor, me ajude. Ainda não sei se estou bem. Me lembro de algumas imagens completamente surreais. Homens verdes e... e...
Jeitosinha sorriu maliciosamente, abriu o zíper expôs seu enorme mistério.
- Sim, Ambrósio. Pelo menos isto é real. Mas que história é essa de homens verdes? Que idiota colocaria estúpidos homens verdes em nossas vidas?
O homem sacudiu a cabeça, confuso. Jeitosinha acariciou sua cabeça, fazendo-o se encolher ainda mais.
- Vou deixar-lhe em paz por enquanto. Mas tenho um pedido: você me ajudará no meu próximo plano de vingança.

Qual será o novo plano de Jeitosinha?